Luiz Horta
Apesar da posição antagônica, nosso encontro foi amistoso. Levei os vinhos; e o Bob Fonseca, as cervejas. Marcamos nosso enfrentamento num local agradável, o Bar Pirajá, escolhido pela variedade de comidas de boteco. Escolhemos e pagamos as porções, para não termos interrupções com assuntos externos ao combate, e atacamos.
A cada petisco trazido, tentávamos harmonizar uma das cervejas selecionadas pelo Bob e um dos vinhos que eu havia levado. Ele acertou todas, pois como se nota nos textos que acompanham as cervejas, Bob tem uma teoria na ponta do gargalo para cada harmonização. Eu fui tateando, mais errando que acertando. Alguns vinhos funcionaram, sem muitos momentos para guardar como memoráveis. As cervejas reinaram. Em palavras mais claras, levamos - eu e os vinhos - uma bela lavada. Para meu consolo, posso dizer que aprendi.
A cerveja, por ser gasosa, é mais aliviante para o sal e as gorduras, ingredientes básicos nesse tipo de comida. Num clássico caso de profeta do passado, posso dizer que pequei por não ter um espumante na manga. Achei que seria demasiado esnobe, tive medo de parecer fanfarrão abrindo um espetacular champanhe Pol-Roger para comer com pastéis - e teria sido justamente minha chance de emplacar um casamento vinho-petisco. Os novos-ricos argentinos da era Menem eram pejorativamente apelidados de os "pizza con champã", o medo de repeti-los me paralisou. Mas o vinho verde foi a prova dessa possibilidade, não é espumante, mas tem agulha, aquele toque de acidez que pica a ponta da língua.
Quem pensa que o encontro foi samba, está enganado. Foram quatro horas de concentração e análise, com disposição de achar os acertos. Não jogamos para ganhar nem fomos com predisposições e preconceitos. A conclusão é que o melhor num bar ainda são as cervejas mesmo, pelo menos com os petiscos. Mas há bom espaço para o vinho nos inúmeros outros pratos de boteco próximos de pratos de restaurante, caso dos escondidinhos e PFs. Ficaram para um futuro desafio vinho x cerveja.
Vinhos
Branco
O Sauvignon Blanc foi bem, principalmente com os salgadinhos mais cremosos, como a empada e os croquetes. Sua acidez foi agradável com a massa e o volume mastigável de ambos. Já com o sal das azeitonas, não deu conta. Pedi, num lampejo de esperança, um cálice de Jerez Fino - e ele se saiu melhor. Com as frituras, oscilou. Ficou gostosinho com o frango, embora sem brilho, mas da linguiça picante perdeu feio. Pastel de carne e Sauvignon Blanc até que foi um bom encontro, mas até eu acho que soa pedante pedir um Sauvignon e dois pastéis
Rosé
O vinho rosado, delicado (escolhi um bem ligeiro), não se saiu bem. Conseguiu um pouco de protagonismo com as empadas e croquetes, que eram mais adocicados na massa, mas perdeu feio das frituras mais potentes, do picante da linguiça, e ficou sem graça com os demais. Outra aposta equivocada. Pensei que seria bom, pois é para beber gelado e matador de sede, mas nisso as cervejas ganharam
Tinto pesadão
Não frustrou minha previsão: já sabia que ele seria inadequado. E foi. Seu peso e corpo intensos, sua quase doçura alcoólica e a madeira muito evidente foram um choque negativo com todos os pratos. As frituras e o sal acentuaram seus taninos um pouco duros, e nem era um vinho tânico, mas um Malbec bem típico, daqueles superconcentrados, quase vinhos do Porto secos e macios. Não deu. Tintos carnudos e boteco não são bons companheiros
Verde
Foi a boa surpresa. Um simples verde português, com sua característica agulha, deu certo com todos os pratos. É geladinho e tem a leve presença de borbulhas. Sua acidez típica enfrenta sal, pimenta e fritura. Se posso fazer uma brincadeira, é um vinho com alma de cerveja, o que explica o desempenho
Tinto leve
Levei um Beaujolais - e foi minha maior decepção. Jurava que sua fruta evidente, boa acidez e taninos delicados seriam um bom curinga. Além de ser um tinto que fica bem quando frio. Engano. O vinho fracassou com quase todos os pratos. Ficou mais tinto que devia, mostrou uma musculatura que não cabia e sobrepujou os sabores. Só fez um papel decente (mas inútil, diante das outras opções de bebida) com o frango
Cervejas
Weissbier
A cerveja escolhida para o embate com azeitonas verdes é peculiar dentro do estilo: a Appia, da Colorado, leva mel em sua receita. A boa presença do ingrediente e do trigo fez frente ao salgado das azeitonas, mas não chegou a criar um terceiro sabor na boca. Ficou a curiosidade de testar a combinação com uma weissbier mais cítrica. Entre os vinhos, o verde parece ter conseguido se sair bem. Empate técnico entre os dois
Dunkel
O estilo, que costuma apresentar boas notas de chocolate, toffee e café, proporcionou uma das combinações mais interessantes da degustação com o croquete de pernil. As notas torradas e adocicadas da Falke Ouro Preto deram mais complexidade ao recheio de carne. Venceu fácil. Como opção mais fácil de ser encontrada, há a Eisenbahn Dunkel
Pilsen
O estilo escalado para a harmonização com a empada de palmito pedia uma dose maior de amargor - leia-se: bem maior do que a de muitas "louras geladas" que se autointitulam pilsen no mercado. A holandesa Christoffel Blond, porém, pareceu demais para a combinação: suas notas de malte até casaram bem com a massa da empada, mas o lúpulo e o amargor se sobressaíram demais no resultado final. Quem sabe uma versão alemã do estilo, com um pouco mais de malte e menos de lúpulo, se saísse melhor. Ou, do mesmo país, uma helles. Entre os vinhos, o verde conseguiu criar um equilíbrio maior neste caso
Stout
O "adversário" era, possivelmente, o mais forte da noite - frango à passarinho - e pedia um duelo à altura. Por isso, a cerveja escolhida foi uma stout mais forte do que a tradicional Guinness: a Baden Baden Stout, com seus 7,5% de teor alcoólico. Embora suas notas torradas e de café tenham feito algum contato com a crosta do frango, ela se provou forte demais para o prato. Mais suave, a Guinness talvez tivesse melhor desempenho. Entre os vinhos, porém, o que mais chegou perto de um bom "samba" foi o rosé, mas pecou pelo destaque demasiado do álcool. Veredicto: nessa disputa, não houve vencedores
Altbier
Em princípio, insinua-se como a combinação perfeita com a porção de linguiça: o malte caramelo casa bem com a carne; o amargor combate a gordura do petisco; e o lúpulo chega a "temperá-lo" um pouco mais. Mas, após algum tempo na boca, aquele amargor acaba se sobressaindo um pouco demais. A altbier, estilo alemão originário da cidade de Dusseldorf, teve como representante na degustação a receita da Bamberg, de Votorantim
Tripel
Protagonizou a combinação mais interessante da degustação com o bolinho de bacalhau. Suas notas cítricas e condimentadas, complexas, complementam o sabor do recheio do peixe e chegam a criar certa sensação de maresia. A marca utilizada nesta harmonização, a belga Tripel Karmeliet, é referência do estilo no mundo. Venceu com boa margem, seguida, em segundo lugar, pelo vinho verde
Brown ale
O estilo, representado na degustação pela americana Brooklyn Brown Ale, mostrou-se bastante versátil. Não só criou um bom equilíbrio com o pastel de carne, fornecendo a ele notas de chocolate e torrado, como ainda saiu em auxílio da Altbier na combinação com linguiça, pela aproximação das notas torradas do malte e do petisco. Nos dois casos, foi superior aos vinhos. Curiosidade, a Brooklyn foi criada pelo mestre-cervejeiro Garrett Oliver, um dos mais famosos especialistas em harmonização de cervejas no mundo.